Dende o pasado 5 de xaneiro se alguén se achega á galería Vértice, en Estoril [Portugal], atoparase dentro da exposición colectiva «Mulheres e as babuchas», un proxecto comisariado por Renata Carneiro na que colaboran 30 mulleres de Portugal, Francia e España intervindo unhas babuchas marroquís de home.
En palabras da propia Carneiro:
«Mulheres e as Babuchas surgiu de uma vontade de expressar um sentimento perante a mulher, mais concretamente, a mulher árabe. Demonstrar o seu papel na sociedade actual , os seus costumes, o seus pensamentos, livres ou não, o uso de lenço ou burka, foi o ponto de partida para a criação deste projecto , tentando desta forma reflectir e comparar com a mulher ocidental.
Partindo deste princípio, foram convidadas 30 mulheres artistas para intervirem numas babuchas masculinas, usadas na vida quotidiana de uma família tradicional, sendo que o suporte é a personificação do homem.
Integram neste projecto que será itinerante por Portugal e França, artistas portuguesas, espanholas e francesas, todas com o seu ponto de vista particular.»
A galega Inma Doval, entre outras, participa no proxecto, que se complementa con poemas e cun prólogo para o catálogo que acompaña a exposición, texto do que me encarguei e que aquí penduro, na tradución a portugués da propia Renata Carneiro:
De pernas para o ar
Texto: Estíbaliz Espinosa
trad. a portugués de Renata Carneiro
A empatia atravessa-nos. Ela move o mundo. Convida-nos a imaginar-nos «na pele» dos outros, para vermos as coisas com outros olhos. A expressão inglesa, com o mesmo sentido, «calçar os sapatos dos outros» (to be in somebodys shoes) funciona como persuasão metafórica para nos descalçarmos e nos pormos na fila para experimentarmos o sapatinho de cristal.
Numa determinada perspectiva histórica, mais do que cabeças femininas o que parece ter havido em abundância são pés. Mais do que o cérebro, o centro de atenção foi o peito do pé feminino, os dedos apertados, a curva do seu arco. Os pés da mulher deixam uma marca, não só por causa do seu caminhar mas também por causa do seu estatuto social e respectivo futuro. Por isso, o famoso sapato de cristal só cabe num pé pequeno, que não pode ir muito longe sozinho, definido pela fragilidade, como a própria cinza que dá nome à *Cinderela (cinder =cinza). Não muito longe, repousam os pés das chinesas, envoltos como casulos de bichos da seda até que os ossos se queixem: pés que representam a impossibilidade de caminhar com desenvoltura, para além do erotismo de tudo o que permanece oculto e tapado. No filme japonês «O intendente San-sho» (K. Mizoguchi, 1954), uma mulher é ultrajada por vingança. Primeiro separam-na dos seus filhos e a seguir cortam-lhe os tendões dos pés. Converte-se, assim, numa eterna prisioneira, que nunca poderá ir à procura daqueles que ama.
Berta do Pé Grande, mãe de Carlos Magno, tem esta alcunha por causa de um dos seus pés, um pé enorme de guerreiro, segundo a lenda. O exagero da deformação talvez tenha servido, neste caso, para sublinhar o pressentimento maternal dos poderosos pés que marcariam a Europa Central nos anos que viriam. Mas Berta, em si, não é Grande. Grande é o seu filho, o Magno. A única coisa que se destaca nela sucede a partir de um dos tornozelos e só até ao metatarso. Uma pequena grandeza, a sua.
Pés que correm de um lado para o outro, seduzem, acariciam, tapam-se, agasalham-se em peles e aquecem-se junto ao fogo ou refrescam-se na água. Ouve-se um murmúrio no mosaico. É a leveza de Xerazade, que quase parece levitar sobre um tapete invisível. Aonde irá esta mulher? É sua a única história que ela mesma finge narrar. Os pés de Xerazade, mais insinuados do que mostrados, nunca marcam as páginas da história, a não ser à margem.
Anda pelo mundo uma assassina confessa de Xerazade. No livro- manifesto de 2011 «Eu matei Xerazade», a poeta e jornalista libanesa Joumana Hadad descalça-se e fala de mulheres que, como ela, são árabes, lêem, masturbam-se, não são submissas, não usam véu se não lhes apetece, e não se ajoelham aos pés de um sultão para negociar.
Xerazade, aí tens as babuchas. Sai do palácio. Talvez penses que o que sabes te isola, mas também te emancipa e protege. A tua astúcia faz-te sobrevoar. Anseias ser independente e luzir como azeite numa lamparina. Nada de segundo plano, nada de marco da história. Estás à margem e dentro da própria história, passeando com os dois pés impacientes sobre um chão descrito com tinta sobre papel.
O governo marroquino, depois das mudanças constitucionais da primavera árabe, enfeita com uma única mulher ministra a equipa dos seus 30 altos dignitários. A sua previsível pasta: Solidariedade e Família. Nas palavras da antropóloga Hayzat Zirari, uma democracia não garante automaticamente a igualdade.
As universais babuchas não parecem poder ser trocadas entre homens e mulheres. No entanto, nada na forma de uma babucha nos faz supor que uma mulher não possa usá-las. São flexíveis. É um calçado cómodo e fresco, com ou sem tacões, com ou sem cores, unissexo.
Várias mulheres artistas desfizeram a forma da babucha e despojaram-na da sua funcionalidade imediata. Viraram-na como uma peúga, mas, como sucede com a flauta de Marsias, quando viramos ao contrário certas ideias, o som já é outro. Se o cérebro humano aumentou de tamanho foi precisamente para dar cabimento ao acto revolucionário de caminhar sobre duas pernas. Mudar a ideia do que nos ajuda a andar, o seu destino, a sua utilidade, pode fazer desaparecer alguma das peças que compõem a maquinaria pesada do pré-concebido.
Nada nos pés de uma mulher nos indica que o seu caminhar tenha de seguir sempre a mesma trajectória. Os pés mudam ao longo da história como os sapatos que nos calçam, desde as socas filhas das holandesas e primas dos geti japoneses até aos sapatos vermelhos de Dorothy no «Feiticeiro de Oz», desde os botins medievais bordados a ouro até aos chapins antigos de cortiça com meio metro de altura ou às sapatilhas silenciosas com as quais se pode correr sem quase tocar no chão. Os pés calçados mudam na obscuridade tecida das suas celas e, com eles, mudam também as ideias que circulam entre a ponta dos dedos e o cérebro que os impulsiona a andar.
* Cinderela, em Espanhol, é Cenicienta, que vem de ceniza, cinza, por estar sempre na cozinha junto do fogão e da cinza.
As universais babuchas não parecem poder ser trocadas entre homens e mulheres: é certo Estíbaliz. E cambian tanto os modelos de babuchas masculinas e femininas…
¿Qué significado terá ese anaco de pel en círculo que mira descaradamente ao ceo? Imaxina as babuchas de Aladino, pois esas! Trátase dun regalo especial que lle fixen a alguén.
Imos ir a este convite en Portugal! que así sexa se o tempo se fai esperar un pouquiño máis…
Envolvente nota. Parabéns! Rosanna Moreda
As babuchas de punta revirada, queres dicir? Dende un impedimento para propinar patadas efectivas ata unha lingua enroscada, lista para disparar no intre menos pensado. Tería graza que fosen como eses matasogras.
Pode que as babuchas reviradas sexan máis cómodas para cruzar as pernas debidamente cando un ou unha monta en alfombras voadoras ou fuma unha xixa tranquilamente nun fumadoiro de, poñamos, Qatar.
O catálogo quedou moi vistoso. Se teño tempo, subo fotos.
Gracias por tu texto maravilloso Estíbaliz! un saludo Renata Carneiro